15 de janeiro de 2024

Escrevo da dor ou finjo não ver?

Escrevo da dor ou finjo não ver?

Dedico à Padre Júlio Lancellott

Não sei se é pecado, ou simplesmente está errado, quando usamos a dor como inspiração para escrever; mas, na verdade, é movida por esse sentimento que muitas vezes, crio textos, sem esforço, como se já estivessem lá, em algum lugar, esperando vazar para o papel.

E não raro, ao reler, me pergunto: Como eu escrevi isso? E me surpreendo saber o quanto de dor, solidão ou desamparo, nos impacta, de vez enquanto, nessa vida, e nos leva a uma percepção maior, que vai além do que podemos enxergar com os olhos físicos.

Sinto-me constantemente a esquadrinhar o coração e reconhecer que a melhor inspiração está no Raio-x da visão e vai além da superfície.

Outro dia me deparei com uma cena: eu estava saindo de um prédio em uma área nobre de Belém, e fiquei algum tempo esperando meu Uber e, pude avistar um homem jovem que revirava a lixeira na frente do prédio.

Essa é uma situação que sempre me choca e me provoca emoções não desconhecidas (por ser uma cena constante), que me levou a detalhar o que via e, observei que não era um mendigo, não vivia nas ruas com certeza. Tinha roupas limpas e até uma boa aparência.

Volto a mencionar, que não sei se é pecado, mas nesses momentos, sempre me lembro de agradecer a Deus, por nunca passar por uma situação semelhante, não por orgulho, nem me sentir superior, mas por entender que, infelizmente, algumas pessoas vivem abaixo da linha da pobreza e que desprovidos de qualquer dignidade, sobrevivem à margem dessa sociedade capitalista e elitista, que esbanja e descarta o que a outros, falta.

Tentei não olhar diretamente, com medo de causar qualquer maior constrangimento àquele homem.

Quando finalmente o meu transporte chegou, e parou um pouco adiante, passei por aquele jovem e ele disse: “Não se preocupe, não estou bagunçando a caixa, só cato as garrafas de plástico” e por alguma razão que não sei explicar, não tive coragem de olhar para ele, só respondi “Não se preocupe, pode pegar”.

Segui meu caminho, imaginando como seria aquela vida: teria ele uma família a quem precisa sustentar? Talvez uma esposa grávida ou filho pequeno necessitando de leite, ou remédios e por essa razão, mesmo sob a chuvinha que caia, ele precisava recolher as garrafas;

Pensei, também, que apesar de tudo, ainda lhe restava alguma dignidade, que fazia com que não pedisse ajuda nas esquinas, mas com seu trabalho (ainda que humilde) procurasse conseguir o parco sustento.

Fiquei por um longo tempo, pensando nisso e não pude evitar escrever, e perguntar, não aos outros, mas a mim mesma:

O que a narrativa desse fato pode acrescentar à minha vida? E então respondi:

Existe um dito popular “O que os olhos não veem, o coração não sente”, e acho que foi por esse motivo, que não olhei para aquele homem, para não ver a expressão dos seus olhos, e é isso que fazemos todos, preferimos não ver, para não sentir.

Mas que sentido tem nossa vida se não somos capazes da empatia?

Que sentido tem a mesa farta do Natal? Do Dia de Ação de Graças se outros precisam ir às lixeiras?

Qual Maior Pecado, escrever da dor ou fingir que não vê?

O que significam os “ritos religiosos”? As missas, os cultos, os sacrifícios, as caminhadas por quilômetros, se nada disso consegue abrir os meus olhos para ver aqueles que nada tem?

Essas perguntas, podem ser respondidas interiormente e, quem sabe, mudar uma realidade tão presente!

 

Solange Lisboa

Escritora/poeta

@solnlisboa

[email protected]

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