24 de janeiro de 2025

Novo conto do escritor Adamantinese (CARA CHATO).

Novo conto do escritor Adamantinese (CARA CHATO).

CARA CHATO

 

 “Nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela, ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular.” ¹

 

A manifestação anticorrupção foi organizada em uma dessas manhãs de sábado em que se tem a falsa impressão do alívio do final de semana. O comércio abria as portas e os funcionários imaginavam aquele dia e meio entre sábado e domingo como salvo-conduto do horrível hábito de trabalhar todos os dias.

O país chamado de Terra do Sol atravessava um período de rara e extrema conscientização acerca dos valores morais de seus líderes. Segundo os residentes, tornava-se impossível respirar e aproveitar seus míseros finais de semana, sempre discutindo o mesmo assunto:  a corrupção institucionalizada pelo governo pátrio. A população não mais tolerava os corruptos, ladrões do dinheiro do povo, gente sem princípios e valores, que não se importavam com o bem da coletividade; pensadores de si mesmos, reis de seus próprios umbigos.

            O povo saiu às ruas. Vestidos com roupas hodiernas que estampavam as cores da Terra do Sol, o azul e o branco, gritavam palavras de ordem contra seus líderes. Alçavam bandeiras da pátria mãe que tremulavam frases adicionadas ao centro: abaixo a corrupção ou governo corrupto.

Aquela gente se considerava paladino da moral, dos bons costumes e de um país livre de políticos corruptos, deturpadores dos bons valores da típica família cristã.

A manifestação transcorreu na mais perfeita ordem; progressivamente bem organizada. Uma carreata percorreu as principais avenidas da Terra do Sol, bagunçando a vida de alguns moradores pacíficos que escolheram aquela manhã para pagar contas na lotérica ou fazer pequenas compras no comércio. O encerramento seria na praça central. Os carros foram estacionando e seus ocupantes criaram uma considerável aglomeração azul e branca. Sobre o palco ali instalado, líderes ufanistas se revezavam proferindo discursos contra a conjuntura corrupta.

Foi naquele instante que o chato chegou. Sócrates era seu nome; conhecido como o famoso espanta rodinha. Tinha o estranho hábito de não concordar, nem mesmo discordar de seus interlocutores. O seu defeito era questionar.

Encostou no primeiro manifestante, era o instalador de antenas. Este o cumprimentou com a saudação do protesto.

— Bom dia Patriota!

— Bom dia Sr. Instalador! — respondeu Sócrates.

— Linda manifestação contra este governo corrupto, não é mesmo?

— Ah sim, muito bonita! Sr. Instalador, o que é a corrupção?

— São estes políticos corruptos que roubam tudo aquilo que veem.

— Sim, verdade! Aliás, mudando de assunto, o Sr. continua instalando aqueles aparelhinhos que se pode assistir todos os canais da TV paga sem gastar um centavo?

— Sim Patriota, com certeza! Se precisar posso inclusive instalar um aparelho deste na sua casa. Vai assistir tudo e sem pagar nada. Tem que pagar apenas o aparelho e o meu trabalho, depois é só curtir a programação sem precisar pagar boleto.

— Isto seria ótimo Sr. Instalador, mas não configura corrupção roubar o sinal de TV?

O instalador ruborizou e surfou no senso comum.

— Imagina Patriota, todo mundo tem isto instalado em casa.

— Ah sim, respondeu Sócrates.

Quando se deu conta estava sozinho no meio da manifestação. Então encostou ao lado do técnico em informática.

— Bom dia Patriota!

— Bom dia Sr. Técnico! – respondeu Sócrates.

— E então, o computador que dei manutenção na semana passada ficou bom?

— Não Sr. Técnico, continua desligando sozinho.

— Patriota eu já falei! A melhor coisa é eu queimar o aparelho e você coloca no seguro da casa.

— Neste caso o computador não iria queimar por uma descarga elétrica contingencial, mas por uma imposição sua. Correto?

— Sim, neste caso, sim.

— E isto não seria corrupção?

— Imagina Patriota, todos o fazem. Um bom dia para o Sr.! — e deixou Sócrates mais uma vez sozinho.

Foi quando encostou o Sr. Líder Religioso.

— Bom dia Patriota!

— Bom dia Sr. Líder Religioso!

— Linda manifestação contra estes políticos corruptos, não?

— Sim, muito bonita Sr. Líder Religioso.

— Patriota, gostaria de aproveitar e convidá-lo para o nosso encontro religioso anticorrupção que acontecerá amanhã. Vamos inclusive levantar fundos para o comitê anticorrupção. Com o dinheiro vamos pagar agentes que irão fiscalizar os políticos corruptos.

— Interessante! E quem serão estes agentes?

— Por enquanto dois sobrinhos estão à frente da comissão.

— Ah sim. Por curiosidade Sr. Líder Religioso, posso fazer uma pergunta?

— Claro Patriota, fique à vontade.

— O Sr. Líder Religioso tem como remuneração apenas quatro salários?

— Sim Patriota, e é tão difícil passar o mês. Tenho três filhos, não é fácil, sabe?

— Sim, imagino Sr. Líder Religioso. Mais uma pergunta. Como conseguiu construir uma casa tão grande, apenas com quatro salários, no mais caro condomínio da cidade?

— Ah, sim, claro, isso foi dinheiro de herança. Uma velha tia nos deixou este alívio. Tenho que ir. Passar bem Patriota!

E mais uma vez Sócrates encontrou-se só na Ágora. Caminhou alguns metros enquanto a voz estridente gritava no microfone da manifestação que as instituições estavam caindo de podre. Encontrou o empresário.

— Bom dia Patriota!

— Bom dia Sr. Empresário!

— Viu o meu novo carro? Tirei ontem da concessionária.

— Sim, vi o Sr. Empresário buzinando durante a carreata, muito bonito. Parabéns pela aquisição. É um veículo muito caro, não?

— Ah sim, mas eu tirei pelo PCD. Consegui um bom desconto.

— Mas o Sr. Empresário tem algum problema de saúde?

— Não, tirei no nome da minha sogra, ela sim tem um grave problema na coluna; inclusive é acamada.

— Compreendo, mas isso não seria corrupção?

— Imagina, todos o fazem. É um excelente benefício. Tenha um bom dia Patriota! E deixou Sócrates, mais uma vez abandonado no meio da turba. Então Sócrates encontrou um velho amigo.

— Bom dia Patriota!

— Bom dia Velho Amigo! Tudo bem? Como vai a Dona Esposa?

— Sabe como é, casamento antigo, relacionamento muito frio.

— Ah sim, difícil.

— Ainda bem que hoje estes sites de acompanhantes oferecem um cardápio variado de belas meninas. Todo domingo depois de ir ao templo com a Dona Esposa, a deixo em casa e falo que vou jogar carteado com os amigos.

— Mas não seria traição, portanto corromper o matrimônio?

— Quem aguenta? É uma boa saída para os anos pesados do casamento. E tem outra, todos o fazem. Tenho que ir. Tenha um bom dia Patriota!

Em meio ao alarido da manifestação acercara-se de Sócrates a Dona Patroa e a Dona Doméstica.

— Bom dia Dona Patroa! — disse Sócrates.

— Bom dia Patriota!

— Há quanto tempo a Dona Doméstica trabalha para a Dona Patroa?

— Já há vinte e cinco anos. É uma filha. — Disse a Dona Patroa.

— Sim, a Dona Patroa é uma mãe para mim. — Aquiesceu a Dona Doméstica.

— Bonito ver uma relação tão duradoura. — Disse Sócrates. Uma patroa que valoriza a colaboradora com salário justo e carteira assinada.

— Não Patriota! Nossa relação é tão próxima que nunca registrei a Dona Doméstica. Ela ganha o salário, dorme e come na minha casa. É realmente uma filha.

— Sim! A Dona Patroa é uma mãe para mim. — Mais uma vez concordou a Dona Doméstica.

— Mas não seria corrupção não pagar os direitos trabalhistas? Décimo terceiro salário, férias, FGTS, previdência e um terço de férias?

— Imagina Patriota! Na minha família, desde a época que vivíamos na fazenda, sempre tivemos esta relação com os nossos colaboradores.

Empinou o nariz, olhou fixo para o palco da manifestação e altiva, sem voltar o olhar ao seu interlocutor, sentenciou:

— Um bom dia Patriota! Vamos Dona Doméstica, você precisa fazer o almoço.

Já estava terminando a manifestação. Os líderes despediam-se no microfone agradecendo a presença do público. Sócrates olhou em um canto da praça. Estavam em uma rodinha o Sr. Instalador de Antenas, o Sr. Técnico em Informática, o Sr. Líder Religioso, o Sr. Empresário, o Velho Amigo e a Dona Patroa. Olhavam enviesados a figura de Sócrates isolada sob a sombra de um jatobá. Sócrates se aproximou.

— Estávamos aqui pensando querido Patriota — disse o empresário —, gostaríamos de oferecer uma bebida?

— Claro, seria uma honra tomar um aperitivo antes do almoço. Inclusive lembrei muito enquanto dialogávamos nesta manhã aquela frase, muito bem-feita por sinal, do historiador Leandro Karnal.

— E qual foi a frase Patriota?

— “Não existe país no mundo em que o governo seja corrupto e a população honesta e vice-versa” ². Ótima frase não? Mas me digam, qual bebida vocês irão me oferecer?

Responderam em uníssono.

— Cicuta!

Cacá Haddad

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¹ Frei Vicente do Salvador avaliando o comportamento ético e moral dos brasileiros em livro de sua autoria, intitulado História do Brasil, escrito em 1627. SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil.  In:  GOMES, Laurentino. Escravidão – Volume II – Da corrida do ouro em Minas gerais até a chegada da corte de Dom João ao Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: Globo Livros. 2021, pag. 154.

 

² NÃO existe país com governo corrupto e população honesta’, diz historiador. G1, 13 mai. 2016. Disponível em: https://g1.globo.com/pr/ oeste-sudoeste/noticia/2016/05/nao-existe-pais-com-governo-corruptoe-populacao-honesta-diz-historiador.html. Acesso em: 22 jan. 2025.

 

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