“Deus dá asas para quem não sabe voar” foi o que disse uma senhora que esperava para aplicar uns fios a mais na sua rala cabeleira, enquanto a cabeleireira cortava meus longos e sedosos cachos cor de mel. Não conseguiu compreender o porquê de uma jovem entrar em um salão, cheia de saúde nos fios e simplesmente dizer — “quero cortar bem curtinho e pintar de roxo” — como se fosse a coisa mais natural do mundo! E ela ali, ansiosa por alongar e clarear os seus. Tivesse ela nascido com aquelas asas!
Há tempos eu sonhava em fazer isso! E fiz. Agora, a imagem que eu via no espelho nada parecia com a menina tímida e desconfiada que, tomada de um instante de coragem, há pouco entrara ali. Ainda procurei por um bom tempo naquelas enormes paredes espelhadas o meu ar meio comportado, sempre querendo ser hippie. E, como sabia, desde o momento em que coloquei o primeiro pé no salão, não encontrei. Também teria sido cortado?
Entrei com o cabelo quase cobrindo o bumbum. Saí com ele curtinho, pintado de uma cor entre o vermelho e o rosa, quase cereja. Feliz até, não muito pela aparência, ainda estava meio chocada com a nova mulher que agora eu encarava no espelho. Feliz pela coragem. Mudar é sempre bom.
Em casa, uma boa bronca da mamãe foi o suficiente para colocar milhões de dúvidas e arrependimentos na minha cabecinha comportada de aparência moderna. Mudança radical, comportamento agressivo, rebeldia…
E lá estava eu novamente, aceitando os rótulos impostos pela sociedade mais próxima, a família. Lá estava eu, outra vez deixando crescer a lista da culpa, aquela que fica na última página, bem escondidinha, do livro que é aberto quando nascemos. Página que tentei cortar junto com os cachos. “Deus dá asas para quem não sabe voar”. Foi quando escutei novamente a frase, desta vez pronunciada pela minha mãe, que parei para pensar:
Ninguém pergunta se queremos “asas” ou não. Simplesmente nos dão. Isto é um destino. Todos temos asas. Então, por que interferir no uso ou desuso da asa alheia? Que mania terrível, o humano tem de querer mandar na asa do outro! Já perdi as contas de quantas vezes me obriguei a procurar, em vão, no meu livrinho da vida, por algum manual que ensinasse o correto uso das asas. E apesar de estar, creio eu, no início do livrinho, aprendi que o manual das minhas asas só eu posso escrever, ou não.
Texto de Lú Magno
Artista Visual
Mestrado pela UFPa.