11 de dezembro de 2023

A Arca das Letras 2012/2013

A Arca das Letras 2012/2013
Projeto Federal que alcançou uma pequena ilha no arquipélago do Marajó-Pa. Sala da Biblioteca Arca das Letras -Vila de Ponta Negra – Muaná-Pa.

Era quase noite em uma sexta feira, que para mim, chama-se “Dia da Preparação” por conta da guarda do Sábado Bíblico.

Encerrei minhas atividades as 17:30 em uma pequena rádio, que funcionava em uma torre de madeira, na Vila de Ponta Negra sobre as estivas, as margens do Rio Pará em Muaná, uma ilha do arquipélago do Marajó.

Ali eu estava há alguns meses, trabalhando na coordenação de um Projeto Educacional, especificamente o “MAIS EDUCAÇÃO”, que alcançava aquela distante e esquecida vila; digo esquecida, por conta do descaso das autoridades eleitas por aquele povo, mas que na verdade, além do voto, nada tinham a ver com aquela gente!

Durante o ano de 2013, estive trabalhando naquele pequeno povoado, que sobrevivia da venda de açaí, durante a safra, e nos demais meses do ano, a pesca do peixe e do camarão, garantia a sobrevivência.

A única escola local, (E.E.E.F.M. Idelfonso Sozinho) abrigava as crianças desde a alfabetização até o ensino médio, onde a maioria deixava os estudos e já começava uma vida de adulto, muitas meninas já gravidas.

Aqueles que tinham condição de continuar os estudos, os pais mandavam para Belém, onde há escolas, universidades, enfim, mais oportunidades.

Mas, voltando ao assunto, da quase noite de sexta feira: descia eu as escadas da pequena rádio, onde passara a tarde fazendo a programação que era ouvido, através de pequenas caixas de som, espalhadas pelas pontes (estivas) e que as pessoas, traziam suas cadeiras e sentavam-se próximo aos autofalantes para ouvir. Eu procurava levar um pouco de humanidade, conforto e esperança àquelas pessoas.

Ao chegar no térreo não podia deixar de apreciar a Cheia da maré do Rio Pará, que naquele momento fazia barulho de ondas batendo nas bordas cercadas por uma pequena mureta de concreto. Era um espetáculo sublime naquele cantinho do Pará, onde se via os barcos e navios navegando ao largo e que causava, pelo menos a mim, que deixara minhas filhas na capital paraense, uma nostalgia, uma solidão como se o mundo nem soubesse que existíamos ali, e na verdade não sabe.

Naquele lugar, distante seis horas de Embarcação da capital Paraense, os dias pareciam sempre iguais e se parasse para pensar no futuro daquelas crianças, seria desanimador. Estava ali com meus pensamentos e sentimentos, quando uma criança da escola de mais ou menos 8 anos, chamado Jorge, se aproximou de mim e disse:

– Diretora: (era assim que carinhosamente, me chamavam, embora eu fosse somente a Coordenadora do projeto) – “A senhora pode me ensinar a ler? Eu gostaria muito, mas as pessoas que sabem, não tem tempo”. Aquela criança me comoveu e eu disse:  claro meu filho, eu vou te ensinar a ler. Esteja na segunda-feira as três da Tarde na Arca das Letras, que vamos começar o estudo.

A Arca das letras era um Biblioteca que, apesar de ser um Projeto do Governo Federal, estava fechada havia três anos, quando cheguei àquela localidade e isso me intrigou, porque a maioria das crianças não sabia ler, mesmo frequentando a escola, e jovens saiam do ensino médio, gaguejando as palavras. A maioria, filhos de pescadores analfabetos e que não conseguiam ter uma visão mais ampla ou estabelecer um senso crítico para aconselhar seus filhos, a buscarem um futuro melhor que o deles.

Então comecei um movimento para reabrir a Arca, que funcionava na sala da casa paroquial que estava desocupada, pois não havia padre residente.

Mas no próximo domingo, quando chegou a embarcação trazendo um padre para rezar a missa, fui ao encontro dele, me identifiquei e logo informei que minha religião não era católica, mas que gostaria de contar com o apoio dele, para reabrir a Arca das Letras, ou seja precisava da sala da casa da Igreja, ao que ele me respondeu positivamente e ficou bastante animado.  Disse que me Daria a sala e ainda conseguiria umas 3 mesas plásticas e cadeiras para que o local ficasse bem com cara de biblioteca.

Meu então marido, que tinha uma locadora que não dera certo, me cedeu as estantes; o pessoal da igreja católica trouxe as mesas e cadeiras e um outro padre ribeirinho me conseguiu muitos livros e revistas.

Esse, eu não sabia que era padre, tinha os cabelos compridos e trajava short e camiseta, chegou no trapiche da vila, chamando por Solange Serrão (meu nome de casada), e eu morava a 100 metros do trapiche, minha casa ficava de frente para o Rio Pará, então logo percebi que alguém gritava meu nome, isso era comum, chegarem gritando o nome da pessoa com quem  queriam falar, se ainda não soubessem onde moravam.

Fomos então, meu marido e eu, e uma dúzia de curiosos que se uniu a nossa caminhada e ao chegar ao trapiche principal, lá estava o padre moderno, com a lancha cheia de livros e revistas, o que pra mim foi encantador, amei aquela atitude.

E foi assim, que consegui em algumas semanas reabrir aquela biblioteca. As crianças faziam fila toda tarde para receber livros e revistas, após preencher uma ficha de controle, e assim que voltassem para devolver aqueles, poderiam levar outros.

Então, na segunda feira as 15:30h, o menino Jorge, foi até a arca das letras e então comecei a lhe ensinar a ler, usando livros infantis ilustrados e com muita paciência ele foi aprendendo a juntar as letras, formar as sílabas e finalmente em 1 mês, estava lendo seus primeiros livros com histórias pequenas.

Não sei qual o prosseguimento dessa história, pois no início de 2014, tive que deixar Ponta Negra e todo aquele trabalho que tanto amava, mas assuntos pessoas exigiam que eu retornasse a Belém.

Não tive mais contato, uma vez que a comunicação era precária e na vila, só havia uma casa onde funcionava um cyber e nem todos tinham acesso a internet.

Soube posteriormente, que após a minha partida para Belém, em poucas semanas a Arca voltou a ser fechada, apesar dos meus pedidos para os monitores que me ajudam, se organizassem para que cada tarde, uma mãe ficasse responsável pelo funcionamento para que as crianças pudessem ter essa oportunidade de adquirir o gosto pela leitura.

A vida tem seus próprios caminhos e acaba nos afastando de situações que gostaríamos de acompanhar até o final, mas mesmo que nunca mais encontre aquele garotinho, que hoje teria 19 anos, tenho uma satisfação enorme quando lembro que, pude ensinar pelo menos uma criança a ler, naquele lugar esquecido e tão carente de atenção e de recursos!

A embarcação me levou pra casa, as ondas que nasciam do movimento e o som do motor, ficaram pra traz. A vista se perdeu ao longe.

O trapiche onde muitas noites ficávamos aguardando a chegada das estrelas e víamos a lua dar um espetáculo, seria uma das melhores lembranças, mesmo assim, não suplantou a expressão do olhar daquele garotinho, quando conseguiu ler a primeira palavra sem titubear.

Eu nunca mais vou esquecer.

 

Solange Lisboa

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